sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Tortura - “Memórias do Chumbo – O Futebol nos Tempos do Condor”


As vítimas do futebol e a sistematização da tortura no Brasil 

(Lucio de Castro - ESPN)

O segundo capítulo de “Memórias do Chumbo – O Futebol nos Tempos do Condor” (de 18 a 21 na ESPN Brasil) viaja pelo Chile, país onde provavelmente mais jogadores se engajaram na resistência aos regimes militares do continente. Na Argentina, as reflexões do mundo da bola vieram de boa parte dos que viveram aqueles tempos algum tempo depois. Nem por isso menos válidas, já que esse engajamento pela construção da memória é parte importante na sociedade daquele país, que caminha nesse sentido em passos muito mais largos do que por aqui.

No Chile, histórias marcantes e emocionantes de resistência vindas desses craques estão relatadas no programa. Os incríveis e reveladores relatos de Carlos Caszely, Leonardo “Polo” Véliz, craques de bola e de vida. Vítimas da ditadura de Pinochet. Além deles, dois jogadores estiveram entre os presos do Estádio Nacional de Santiago. Algo meio surreal, dois astros que ali brilhavam, submetidos aos maus tratos do campo de concentração em que o estádio se transformou. O caso de Hugo Lepe é ainda mais chocante. Jogara a Copa de 1962 ali onde viria a ser preso, junto com o também jogador Mário Moreno. Foi a coragem de outro jogador, Francisco “Chamaco” Valdés, das Copas de 1966 e capitão em 1974 que salvou Hugo Lepe. Arriscou a própria pele em investidas para libertar o amigo.

No Brasil, alguns atletas e gente do futebol estiveram sob vigilância dos militares, como mostraremos. E o futebol esteve sob absoluto controle. Mas o tema passa um pouco ao largo por quem viveu aqueles dias da Copa de 1970 nos gramados. Tenho posição muito clara quanto a isso. Obviamente ninguém tem obrigação de se pronunciar, de refletir. Antes ou agora. Como seria um absurdo cobrar engajamento daqueles jogadores. Se a maioria esmagadora do país ignorou o que acontecia nas masmorras, tal cobrança seria uma aberração. Mas ao fim da missão "Memórias", tendo conversado tanto, com tantos jogadores que viveram tal época no continente e que pedem para falar, é claro que fica um gosto estranho com o silêncio por aqui. Repito, sem qualquer julgamento. Apenas uma constatação vendo os demais e aqui. Pedir qualquer relato ou reflexão de quem não poderia mesmo dar essa reflexão seria um profundo equívoco. Mas o silêncio de quem pode naquele grupo é o que o grandíssimo historiador Carlos Eduardo Sarmento, parte fundamental e referência no capítulo “Brasil” definiu como “o silêncio eloquente”. Que reflete muito de nossa sociedade, tão atrasada em suas comissões de verdade e em passar a limpo tudo isso.

Os métodos usados no Chile foram ensinados aqui. Está relatado em tantos documentos, há tanto tempo e contado por algumas vítimas do Estádio Nacional no nosso “Memórias do Chumbo – O Futebol nos Tempos do Condor”. Exportamos aos vizinhos a excelência atingida em tortura por aqui.

Por sua vez, aprendemos muito com os franceses e nas escolas comandadas pelos americanos, como contou em nossa última matéria Jair Krischke, presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos. Até então,“nossos militares não adotavam a tortura como ‘ferramenta de trabalho’, pois eram formados na velha escola militar de guerra convencional. Na guerra colonial da Argélia esses franceses desenvolveram seus métodos, depois ensinados aqui. Dividir a cidade em zonas, fichar moradores e vigiar, criando órgãos de informação, dar batidas e invadir aleatoriamente domicílios, apavorar os mais pobres em busca de informação, promover a desaparição de pessoas para instaurar o medo generalizado e torturar.

“Um método legítimo” segundo Paul Aussaresses, veterano da Argélia e professor de tortura no Brasil.

De acordo com Mário Magalhães, no já citado aqui magistral “Marighella”, um dos erros capitais do guerrilheiro foi subestimar o estrago que a tortura poderia fazer na resistência. O erro de associar a resistência a tal prática “meramente a uma escolha. Como se fosse possível a mente sã do corpo flagelado”. Outro historiador, Carlos Fico, já citado por seu “Como Eles Agiam – Os Subterrâneos da Ditadura Militar: espionagem e Polícia Política” e tantos outros sobre o tema, dá importante testemunho sobre o peso da tortura e inflitração para o regime. Impressionante é o relato de Cid Benjamin no capítulo “Brasil” que fecha a série no dia 21.

Muitos livros, impossível destacar dez por cento, são relatos do aspecto mais sórdido daqueles dias. “Tirando o capuz”, de Álvaro Caldas é praticamente um pioneiro por aqui, assim como “Batismo de Sangue”, de Frei Betto, que virou filme. Nos mais recentes, de excelente qualidade, cito alguns e cometo o pecado da omissão de tantos outros. “A Política dos Quarteis – Revoltas e Protestos de Oficiais na Ditadura Militar Brasileira” é um belo trabalho da historiadora francesa Maud Chirio, que foi de imensa presteza em tantas dúvidas que tive ao longo desses meses e apuração para essa série, respondendo com atenção mesmo do outro lado do Atlântico. Um olhar absolutamente novo, fruto de pesquisa minuciosa. Generoso também foi José Trajano, com seu acervo de filmes, músicas e lembranças daqueles tempos.

“Um Tempo Para Não Esquecer”, de Rubim Santos de Leão Aquino, o Aquino, mestre de tantos historiadores, é porto seguro, minucioso levantamento de envolvidos com tortura. Sempre apto, a qualquer hora, para dirimir dúvidas, como assim foi Cecília Coimbra, do grupo “Tortura Nunca Mais”. Não há mais impactante relato do que “Diário de Fernando – Nos Cárceres da Ditadura Militar Brasileira”. Dilacerante crônica daqueles dias, de um homem que viveu em plenitude a utopia e por ela segue até hoje, ainda que os fantasmas daqueles dias atormentem sua alma. “As torturas me haviam impelido a esbarrar no limite de minha resistência. Virado ao avesso, agora eu conhecia as margens abissais da condição humana...A morte, naquelas circunstâncias, viria como consolo. Fecharia com seu selo definitivo meus segredos, e também minha agonia”.

São muitos outros com relatos impressionantes. De outra ordem mas também definitivos, são “Ditadura e Repressão – O autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina”, de Anthony W. Pereira que mergulha em meandros complexos para mostrar porque e como ditaduras arbitrárias se preocupam em manter um verniz de legalidade. “A Construção Social dos Regimes Autoritários”, (organização de Denise Rollemberg e Samantha Viz Quadros) em seu precioso volume sobre Brasil e América Latina mostra como as sociedades constroem consensos e acomodações de interesses que acabam por legitimar ditaduras.

Obras que olhando para trás apontam um futuro onde não exista espaço para a barbárie daqueles anos. Verdade contadas. Arquivos abertos. Em minhas andanças por eles para essa série, encontrei fragmentos preciosos desse tempo para montarmos esse quebra-cabeças. Temos compartilhado alguns desses aqui. Segue um testemunho dessa barbárie que repousava numa dessas caixas de arquivo. Um questionário para “Identificação de Terroristas”. Questões que orientavam os interrogatórios do ano de 1971. Em sua maioria absoluta, interrogatórios sob tortura. Relatório saído do Ministério do Exército e difundido aos órgãos de segurança para padronizarem as sessões. O método sistematizado. Segue anexo. A primeira página do relatório não constava mais dos arquivos. É possível que contivesse orientações mais específicas. Como eram distribuídos nos diversos órgãos, é possível que pela numeração se recupere toda a peça. Para que tijolo por tijolo vá se reconstruindo.

FONTE da matéria-

Um comentário:

  1. Baixar o Documentário - Memórias do Chumbo: O Futebol nos Tempos do Condor - http://migre.me/d9MtD

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