Aprender com os erros do passado é um lugar-comum no dialecto ecologista. Mas a Europa não está a colocá-lo em prática.
fonte: http://www.publico.pt/ecosfera/noticia/agencia-europeia-alerta-para-potenciais-riscos-das-novas-tecnologias-1581754
Um relatório da Agência Europeia do Ambiente traça um quadro alarmante de casos em que sinais precoces de perigo foram ou estão a ser ignorados por decisores políticos, cientistas e empresários – incluindo no desenvolvimento de novas tecnologias, como telemóveis, nanomateriais e organismos geneticamente modificados.
O documento Late Lessons from Early Warnings – uma segunda edição de um relatório semelhante lançado em 2001 – dispara um surpreendente rol de críticas frontais contra uma série de atitudes, da simples inação ou negligência dos governos até campanhas objectivas de contra-informação das empresas. Em contraciclo com o princípio da precaução, este comportamento, diz a agência europeia, levou a danos evidentes para a saúde humana e para o ambiente em casos como os relacionados com o chumbo na gasolina, o mercúrio, os pesticidas, o nuclear, as alterações climáticas ou as cheias.
Em 800 páginas, o relatório acusa diretamente o sector privado de ter manipulado a opinião pública em vários momentos, através de cientistas contratados ou comentadores nos órgãos de comunicação social. “Fabricar a dúvida, desrespeitando as evidências científicas sobre os riscos e alegando excesso de regulação, parece ser uma estratégia deliberada de alguns grupos industriais e think tanks para minar o processo de decisão baseado na precaução”, alega o relatório.
Através de 18 estudos de caso, o relatório conclui que existem barreiras importantes à colocação em prática do princípio da precaução, como os horizontes políticos e financeiros curtos, os monopólios tecnológicos, o carácter conservador e fechado das instituições científicas e a inércia dos processos de decisão. apenas os erros do passado são relembrados. A Agência Europeia do Ambiente lança um alerta também sobre sinais que estão a surgir nas novas tecnologias, e que não estão a ser levados em conta (ver caixas). “Produtos são colocados no mercado sem provas de que representam perigo, mas isto não é o mesmo que dizer que há provas de que não há perigo”, afirma a directora executiva da agência, Jacqueline MacGlade, em declarações ao PÚBLICO. “Nos telemóveis, é muito difícil estimar os riscos de uma tecnologia que está continuamente a evoluir. A ciência simplesmente não consegue acompanhar o passo”, diz MacGlade.
Jacqueline MacGlade, em declarações ao PÚBLICO. “Nos telemóveis, é muito difícil estimar os riscos de uma tecnologia que está continuamente a evoluir. A ciência simplesmente não consegue acompanhar o passo”, diz MacGlade.
A responsável pela agência diz também que há uma grande desproporção nos investimentos. “Quando vemos que, na década passada, gastámos na Europa 70 mil milhões de euros no desenvolvimento da biotecnologia, nanotecnologia e tecnologias de informação e comunicação, mas só um por cento na avaliação dos seus riscos, percebemos o quanto o nosso conhecimento sobre os perigos é minúsculo em comparação com os aspectos positivos destes produtos”, refere.
Aos que criticam o alegado exagero de muitos alertas ambientais, o relatório da Agência Europeia do Ambiente responde com uma análise de 88 potenciais falsos alarmes, concluindo que apenas quatro, de facto, o foram. Todos referem-se a casos dos Estados Unidos: o receio de uma praga sobre a cultura do milho, que levou à expansão das plantações em 1971; a decisão de rotular a sacarina, em 1977, então temida como um cancerígeno; a vacinação em massa da população contra a gripe suína em 1976; e a relutância em autorizar a irradiação de alimentos com químicos que os poderiam proteger.
Para a agência europeia, os casos contrários – de preocupações fundadas, mas ignorados – revelam uma série de mazelas estruturais, como falta de transparência, interesses particulares e falhas de governação e da democracia. “No final, temos soluções muito pobres”, diz Jacqueline MacGlade.
Algumas preocupações do relatório sobre as novas tecnologias:
Transgénicos
O desenvolvimento e a difusão dos organismos geneticamente modificados têm sido orientados “de cima para baixo”, a partir sobretudo dos interesses comerciais, em detrimento de uma lógica “de baixo para cima”, que envolveria mais o conhecimento local e as necessidades dos agricultores e das comunidades. O ideal, segundo a Agência Europeia do Ambiente, seria uma combinação de ambos, mas não é o que tem acontecido. “A abordagem ‘de cima para baixo’ muito provavelmente falhará nas promessas de segurança alimentar e redução da pobreza, porque contribui para um ciclo fechado que concentra recursos, conhecimento e influência, como se tem visto no sector dos agro-químicos e das sementes”, argumenta o relatório. A agência chama a atenção para muitas limitações das avaliações de risco dos transgénicos. “O resultado preocupante é que as culturas geneticamente modificadas são tidas como seguras sempre que não há provas de perigo, como se isto fosse equivalente a haver provas de que não há perigo”, alerta o relatório, que compara a situação actual com o que aconteceu com o amianto, o benzeno e a doença das “vacas loucas”.
Telemóveis
Em 2011, a Agência Internacional de Investigação sobre o Cancro (IARC, na sigla em inglês) classificou as radiações dos telemóveis como um “possível cancerígeno”. Segundo a IARC, quando as evidências científicas são fortes, um produto pode ser classificado como um cancerígeno “confirmado” ou “provável”. Dizer que as radiações são um “possível cancerígeno” significa que as provas de que provocam cancro no ser humano são “limitadas”. Para a Agência Europeia do Ambiente, isto é suficiente para que se tomem atitudes preventivas. Mas o que se observou foi uma reacção contrária da indústria, que viu ali uma confirmação de que os telemóveis não representam perigo. “Sem dúvida, a decisão da IARC iniciou uma máquina de contra-informação global, semelhante à lançada pela indústria do tabaco, quando a IARC estava a avaliar o fumo passivo como carcinogénico, nos anos 1990”, conclui o relatório. A agência considera “impressionante” como a classificação da IARC “parece não ter tido qualquer impacto significativo na percepção dos governos quanto à sua responsabilidade de proteger a saúde pública”, em especial porque há forma simples de se reduzir a exposição dos utilizadores à radiação.
Nanotecnologia
A nanotecnologia está a desenvolver-se rapidamente, colocando no mercado materiais elaborados em laboratório a partir da combinação individual de átomos e moléculas. Em 2011, havia 1317 produtos registados, com aplicações diversas, como em cosméticos, computadores, artigos de desporto, embalagens, tintas ou produtos de limpeza. Mas, seja por se tratar de materiais novos, seja pela sua minúscula dimensão, os nanomateriais podem representar riscos para o ser humano e para o ambiente, que ainda não estão completamente avaliados. “O desenvolvimento da nanotecnologia tem ocorrido na ausência de normas claras (…) sobre como integrar as preocupações sobre saúde, segurança e ambiente”, alerta o relatório da agência europeia. A investigação, diz a agência, não está a dar “respostas claras a perguntas críticas” e os governos estão desatentos. Segundo o relatório, é preciso fazer mais para aproveitar os benefícios dos nanomateriais, “sem deixar um legado de prejuízos, e evitando que a nanotecnologia se transforme numa lição para as futuras gerações sobre o que não se deve fazer”.
Produtos são colocados no mercado sem provas de que representam perigo, mas isto não é o mesmo do que dizer que há provas de que não há perigo.
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