A presidente Dilma Rousseff sancionou no dia 23 de novembro a Lei 12.732/2012, publicada no Diário Oficial da União na mesma data,a qual dispõe que pacientes com neoplasia maligna (tumor maligno) deverão iniciar o tratamento no Sistema Único de Saúde no prazo máximo de 60 dias, contados a partir do diagnóstico da doença. Ressalte-se que antes do advento da lei, no ano de 2011 o Tribunal de Contas da União[i] realizou auditoria na Secretaria de Atenção à Saúde do Ministério da Saúde e no Instituto Nacional de Câncer com o objetivo de avaliar a implementação da Política Nacional de Atenção Oncológica e constatou que:
“Enquanto no Reino Unido, em 2007, mais de 99% dos pacientes receberam seu primeiro tratamento para câncer dentro de um mês a contar do diagnóstico, no Brasil, a análise dos dados dos atendimentos prestados pelo SUS, em 2010, indicou que apenas 15,9% dos tratamentos de radioterapia e 35,6% dos de quimioterapia iniciaram-se nos primeiros 30 dias. Além disso, o tempo médio de espera entre a data do diagnóstico e o início dos tratamentos foi de 76,3 dias no caso de quimioterapia e de 113,4 dias no caso de radioterapia.”[ii]
A Lei, que entra em vigor 180 dias após sua publicação, objetiva melhorar a eficácia da prestação de serviços no tratamento da doença, uma vez que elevados tempos de espera para a realização dos diagnósticos e dos tratamentos de câncer podem produzir consequências graves para os pacientes, como a diminuição das suas chances de cura e do tempo de sobrevida. Convém então proceder a uma breve análise da lei e, tendo em vista o atual cenário de crescente judicialização da saúde, tentar vislumbrar as possíveis discussões judiciais que poderão vir à tona para garantir a aplicação da lei.
No artigo 1º da Lei 12.732/2012, além de se dispor que o paciente com neoplasia maligna receberá, gratuitamente, no SUS, todos os tratamentos necessários, na forma da lei, estabelece em seu parágrafo único que: “A padronização de terapias do câncer, cirúrgicas e clínicas, deverá ser revista e republicada, e atualizada sempre que se fizer necessário, para se adequar ao conhecimento científico e à disponibilidade de novos tratamentos comprovados.” Portanto, em consonância com o artigo 196 da Constituição Federal, que preconiza ser a saúde direito de todos e dever do Estado, objetiva-se garantir, conforme o texto constitucional, o acesso universal e igualitário (e também gratuito) às ações e serviços para tratamento do câncer.
Cabe questionar, primeiramente, se este dispositivo poderá ou não servir de fundamento àqueles que buscam, pela via judicial, não o tratamento necessário para o câncer no SUS pelas suas Portas de Entrada (ou seja, pelos serviços de atendimento inicial à saúde do usuário no SUS, conforme artigo 2º, III, do Decreto 7.508/2011), mas somente determinado medicamento (muitas vezes tais pacientes são beneficiários de planos de saúde), sem se submeter ao tratamento pelo SUS. Em segundo lugar, convém questionar se a expressão “todos os tratamentos necessários” significaria toda e qualquer tecnologia em saúde (p. ex., exames, medicamentos, procedimentos) existente no mercado.
Neste ponto, convém destacar que nenhum sistema público de saúde no mundo —por mais desenvolvido que o país seja— teria condições de suportar o custo decorrente da incorporação e fornecimento de todo e qualquer tratamento médico ou tecnologia em saúde existente, considerando o desenvolvimento científico-tecnológico da medicina e dos fármacos nos dias de hoje, até porque tais avanços conduzem a pressões da indústria farmacêutica sobre o sistema[iii], além do que a incorporação e o uso de novas tecnologias em saúde, por suas implicações financeiras, logísticas, bem como por razões de segurança dos usuários, necessita de avaliações especializadas e rigorosas, sobretudo pela dificuldade de se estabelecer o que é realmente necessário no cuidado à saúde.
Tais questionamentos são pertinentes tendo em vista que as ações judiciais envolvendo a assistência à saúde em nosso país se referem, em grande maioria dos casos, ao fornecimento de medicamentos, sendo que os medicamentos antineoplásicos representam considerável parcela dos custos suportados pelos entes para fornecer os fármacos pleiteados em tais ações. Nesse contexto, relevante citar trecho de capítulo do livro “Litigating Health Rights: CanCourtsBring More Justice do Health?”, publicado pela Harvard Law School, em que se procedeu a uma análise sobre a Judicialização da Saúde em diversos países (Argentina, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Índia e África do Sul). No capítulo que trata da situação no Brasil, Octavio Luiz Motta Ferraz afirma:
(...) também há evidências consistentes de que a maior parte dos casos (incluindo processos coletivos) se refere a medicamentos. Por vezes as drogas são novas e não foram incorporadas ao sistema público de saúde, às vezes já fazem parte da política pública de saúde, aparecendo em sua “lista oficial.” Não está clara qual a percentagem de ações recai em cada situação. O que está claro é que a maior parte dos custos da judicialização é gerada pelo primeiro tipo de reivindicação, especialmente pedidos de medicamentos que não estão disponíveis no Brasil, e às vezes para as drogas que foram rejeitadas como não custo-efetivas em sistemas de saúde pública dos países mais desenvolvidos. Quando se combinam estes dois elementos-chave do atual modelo brasileiro de judicialização do direito à saúde, parece plausível concluir que o impacto global do modelo é socialmente negativo. Ao invés de aumentar a oferta de benefícios de saúde que são mais necessários aos mais desfavorecidos —como saneamento básico, acesso razoável a cuidados de saúde primários, e os programas de vacinação— este modelo desvia recursos essenciais do orçamento da saúde para o financiamento da maior parte de alto custo medicamentos reivindicados por indivíduos que já são privilegiados em termos de condições de saúde e serviços. Para que a judicialização da saúde produza um impacto social positivo no Brasil, este modelo teria que mudar de várias maneiras. Os juízes teriam de ser mais restritivos em sua interpretação do direito à saúde. Eles precisam reconhecer que os recursos são limitados e as prioridades devem ser definidas e que a capacidade de acessar o Judiciário não é um critério justo para a alocação de recursos para a saúde.[iv] (tradução livre)
Assim, além do impacto socialmente negativo, conforme frisado no trecho citado, é de se lembrar que o direito à saúde não pode ser reconhecido apenas pela via estreita do fornecimento de medicamentos, razão pela qual a política de atenção oncológia envolve ações de promoção, prevenção, diagnóstico, tratamento, reabilitação e cuidados paliativos, organizadas e articuladas entre as três esferas de governo, por meio de redes estaduais ou regionais de atenção oncológica. Contata-se, portanto, que a atuação do Poder Judiciário, ao aplicar a norma jurídica para um caso individual em ação cominatória em que comumente se pleiteia o fornecimento de medicamentos antineoplásicos, na maioria das vezes não consegue se alinhar às diretrizes da lógica de funcionamento do SUS, criando critérios de diferenciação no atendimento aos usuários do sistema, além de interferir na gestão dos recursos orçamentários legalmente previstos.
Pode-se concluir que o norte da lei não é o mero fornecimento de medicamentos, e que a despeito do diploma legal prever que a padronização de terapias do câncer deverá ser atualizada sempre que se fizer necessário para se adequar ao conhecimento científico e à disponibilidade de novos tratamentos comprovados, em decisão judicial exarada em processo que se objetiva o fornecimento de determinado fármaco deve-se, ao analisar eventuais omissões administrativas, cercar-se ao máximo dos apontamentos técnicos relativos à referida esfera de atuação do Poder Executivo, sem olvidar da repercussão de sua decisão no âmbito da Administração Pública. Frise-se ainda que a Lei em comento deve ser interpretada levando em consonância o disposto na Lei 12.401, de 28 de abril de 2011, que dispõe sobre a assistência terapêutica e sobre as condições e requisitos para a incorporação de tecnologias em saúde no SUS. Ademais, o Decreto 7.646, de 21 de dezembro de 2011, dispõe sobre a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS[v] e sobre o processo administrativo para incorporação, exclusão e alteração de tecnologias em saúde pelo Sistema Único de Saúde. Da leitura de tais atos normativos conclui-se que a incorporação de tecnologia em saúde no SUS[vi] resulta de processo administrativo previsto no Decreto citado[vii], em consonância com a Lei 9.784/1999, e pressupõe análise técnica, preponderante e indispensável, que irá fundamentar a decisão de incorporação ou não da tecnologia. A própria Lei 12.401/2011 prevê a realização de consultas e audiências públicas, estabelecendo a participação da sociedade civil como meio de garantir mais transparência nos processos de incorporação de novas tecnologias, produtos e serviços na rede pública de saúde (artigo 19-R, parágrafo 1º, III, IV, inseridos na Lei 8.080/1990)
Prosseguindo à análise da Lei, observa-se que em seu artigo 2o se fixa o prazo máximo para o primeiro tratamento no SUS, bem como o que se entende por primeiro tratamento, senão vejamos:
“Art. 2º O paciente com neoplasia maligna tem direito de se submeter ao primeiro tratamento no Sistema Único de Saúde (SUS), no prazo de até 60 (sessenta) dias contados a partir do dia em que for firmado o diagnóstico em laudo patológico ou em prazo menor, conforme a necessidade terapêutica do caso registrada em prontuário único. § 1o Para efeito do cumprimento do prazo estipulado no caput, considerar-se-á efetivamente iniciado o primeiro tratamento da neoplasia maligna, com a realização de terapia cirúrgica ou com o início de radioterapia ou de quimioterapia, conforme a necessidade terapêutica do caso.”
No entanto, ressalte-se que a par da necessidade de início de tratamento em prazo razoável após o diagnóstico, um ponto não tratado pela lei, mas também de suma importância, é o papel da atenção primária na promoção da saúde, prevenção de doenças e fatores de risco e diagnóstico precoce, lembrando que um paciente com câncer diagnosticado tardiamente tem uma chance consideravelmente menor de sucesso no tratamento.
No diploma legal se estabelece ainda que os pacientes acometidos por manifestações dolorosas consequentes de neoplasia maligna terão tratamento privilegiado e gratuito, quanto ao acesso às prescrições e dispensação de analgésicos opiáceos ou correlatos. Nesse ponto, deve ser esclarecido que o acesso aos medicamentos antineoplásicos no SUS é distinto dos demais componentes da Assistência Farmacêutica do SUS (básico, especializado e estratégico) em que se inserem os medicamentos analgésicos acima referidos. É se destacar questão que muitas vezes é colocada de forma equivocada nas ações judiciais em que se objetivam fármacos para tratamento de câncer, porquanto o fornecimento de medicamentos antineoplásicos não se dá por meio de Componentes da Assistência Farmacêutica do SUS (não fazem parte das “listas” de medicamentos do SUS p.ex, RENAME), sendo o esquema terapêutico e o fornecimento dos medicamentos responsabilidade dos estabelecimentos devidamente credenciados e habilitados para a prestação de serviços oncológicos no âmbito do SUS[viii], ou seja, em relação à quimioterapia do câncer em regra nem o Ministério da Saúde tampouco as Secretarias de Saúde fornecem diretamente medicamentos contra o câncer ao usuário do SUS. O tratamento cirúrgico, os transplantes e a iodoterapia, são pagos via Autorização para Internação Hospitalar (AIH); as radioterapia e quimioterapia via Autorização para Procedimento de Alta Complexidade (APAC), majoritariamente. Assim, os estabelecimentos de saúde credenciados no SUS registram, respectivamente a suas habilitações, os tratamentos em AIH (hospital) e APAC (hospital e serviço isolado de radioterapia), conforme procedimentos tabelados.
Portanto, se faz imprescindível o conhecimento da Política de Atenção Oncológica no SUS pelos operadores do direito que lidam com o tema, para que seja possível o aperfeiçoamento do sistema, até porque comumente se percebem alegações e até mesmo decisões judiciais que denotam a ausência de familiaridade com a política pública, o que acarreta, por vezes, a prolação de decisões judiciais inexeqüíveis pela Administração Pública.
A lei dispõe ainda de consequências no caso de seu descumprimento (“Art. 3o O descumprimento desta Lei sujeitará os gestores direta e indiretamente responsáveis às penalidades administrativas”), sem especificar quais sejam tais penalidades administrativas. No entanto não é difícil perceber que o descumprimento da lei pode dar azo a propositura de ações civis públicas em face dos entes públicos e ações de improbidade administrativa em face dos gestores.
O dispositivo mais importante da referida lei é o artigo 4º, que assim dispõe: “Os Estados que apresentarem grandes espaços territoriais sem serviços especializados em oncologia deverão produzir planos regionais de instalação deles, para superar essa situação.” Tal relevância se dá porque a observância do prazo máximo de 60 dias contados a partir do diagnóstico para que o paciente inicie o tratamento de câncer no SUS pressupõe a estruturação e aperfeiçoamento de uma rede de serviços regionalizada e hierarquizada que garanta atenção integral à população, conforme preconiza a Portaria GM/MS 2.439, de 08 de dezembro de 2005 (substituindo a Portaria GM/MS 3.535, de 2 de setembro 1998), que instituiu a atual Política Nacional de Atenção Oncológica, a qual se encontra em permanente revisão.
Não obstante a existência de tais fragilidades no sistema, razão de existência da Lei em questão, que objetiva o fortalecimento e implementação da Política Nacional de Atenção Oncológica, verifica-se quase que a totalidade das demandas judiciais (individuais e coletivas) envolvendo o tema da assistência em oncologia no SUS objetiva, basicamente, a concessão de fármacos antineoplásicos recém-lançados no mercado (frise-se que tal infinidade de novas tecnologias nem sempre são tão inovadoras quanto o esperado e mais eficazes que as existentes como anunciado pelos laboratórios farmacêuticos) e não o aperfeiçoamento da política como, p.ex, pela estruturação das Redes Estaduais ou Regionais de Atenção, sendo que a necessidade de tal estruturação e aperfeiçoamento da rede é condição primordial para que se alcance o acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde.
O aperfeiçoamento da Rede de Atenção Oncológica é imprescindível para garantia de uma assistência mais eficiente haja vista que o tratamento do câncer é multiprofissional e multidisciplinar, e demanda uma estrutura hospitalar (de internação e ambulatorial) com serviços gerais e especializados, não se constituindo em um atendimento isolado, seja cirúrgico, radioterápico ou quimioterápico, dado que muito raramente um doente vem a ser tratado somente com uma dessas modalidades terapêuticas (vide Portaria SAS/MS nº 741/2005, especialmente, o Anexo I, requisitos para que um hospital seja habilitado como Unidade de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia — Unacon ou Centro de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia — CACON, em termos de estrutura física, recursos humanos e equipamentos).
Cabe primordialmente aos estados e municípios, em razão da diretriz da descentralização que o orienta o SUS (artigo 198, I, da Constituição Federal) identificar suas necessidades de acordo com sua regionalização, utilizando-se dos instrumentos de gestão previstos para realizar o planejamento, organização e implantação de sua Rede de Atenção à Saúde. Frise-se que os principais instrumentos de planejamento são: o Plano Diretor de Regionalização (PDR), Plano Diretor de Investimento (PDI) e Programação Pactuada e Integrada da Atenção à Saúde (PPI), e que tais instrumentos são de suma importância para a observância do artigo 4º da Lei em questão.
Por fim, destaca-se que a redação do artigo, não obstante ser vaga, além de não determinar o prazo para a elaboração de planos regionais de instalação de serviços especializados em oncologia pelos estados (o que deve ser feito em conjunto com os municípios), aponta para os objetivos primordiais da lei em comento, que devem ser observados pelos operadores do direito ao interpretá-la e aplicá-la em casos concretos, quais sejam, o fortalecimento e a organização de redes para a melhoria do acesso à prevenção, ao diagnóstico e ao cuidado integral, tendo em vista a estrutura deficiente de rede de saúde de média complexidade, responsável pela realização de procedimentos de diagnóstico oncológico, além de se contornar as deficiências na prevenção do câncer e o despreparo da atenção primária para rastrear precocemente os casos de câncer e encaminhá-los para a atenção especializada.[ix]
FONTE - http://www.conjur.com.br/2013-jan-09/luis-felipe-franco-lei-estabelece-prazo-tratar-paciente-cancer2 (VER AS REFERÊNCIAS DO TEXTO NESTE LINK)
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