Chagas de uma velha conhecida
Pesquisadores associam a doença de Chagas à depressão e propõem novo tratamento, com drogas comerciais e baratas.
(imagem - fotografia com microscópio do transmissor da doença. com a legenda A presença do ‘Trypanosoma cruzi’, parasita causador da doença de Chagas, no organismo desencadeia uma desordem imunológica e neuroquímica que leva à depressão. (foto: CDC/ Dr. Myron G. Schultz)
Inchaço, insuficiência cardíaca, problemas digestivos. A desagradável lista de sintomas da doença de Chagas crônica ganha mais um elemento: a depressão. Mais de 100 anos depois da descoberta e caracterização da doença por Carlos Chagas, pesquisadores do Instituto Oswaldo Cruz/Fiocruz mostram que a presença do parasitaTrypanosoma cruzi no organismo induz uma desordem neuroquímica e imunológica que leva à depressão.
Muitos relatos clínicos de pacientes com a doença citavam a depressão, porém se acreditava que ela tinha origem psicológica, por se tratar de uma enfermidade grave e incurável. Mas uma equipe liderada pela bióloga Joseli Lannes-Vieira investigou mais a fundo a relação entre as duas doenças depois de observar que camundongos infectados com o parasita de Chagas ficavam recolhidos e aparentemente desanimados.
A equipe fez uma série de testes com os animais infectados para saber se o comportamento se devia a uma indisposição ou a um quadro depressivo. Em um dos experimentos, camundongos com e sem a doença de Chagas foram colocados em uma banheira da qual não conseguiam sair. Os animais normais nadaram procurando uma escapatória. Já os doentes desistiram de nadar depois de algum tempo.
Em outro teste, que exigia menos esforço físico, os camundongos foram pendurados em uma trave pela cauda. Os animais não infectados logo subiram na trave para sair da posição invertida, diferentemente dos animais infectados, que desistiram. “Esses animais se saíram bem em testes como a caminhada, o que mostra que eles não tinham limitações físicas nem dificuldade em praticar outras atividades, mas sim apresentavam um quadro depressivo associado à desistência”, diz Joseli Lannes-Vieira.
A prova veio quando os pesquisadores trataram os camundongos infectados com um antidepressivo muito usado, a fluoxetina, e o quadro depressivo foi revertido. “Isso nos indicou que a doença de Chagas estava mexendo com o quadro de captação de serotonina, o ‘hormônio da felicidade’, cuja falta leva à depressão”, diz Lannes-Vieira.
A pesquisadora observou que o T. cruzi desencadeia um desequilíbrio do sistema imune que leva à produção de uma proteína inflamatória conhecida como fator de necrose tumoral. Essa proteína ativa uma enzima que bloqueia a síntese de serotonina. “É como se o paciente tivesse a produção do seu hormônio da felicidade sabotada”, explica Lannes-Vieira.
A interação entre proteínas inflamatórias e depressão já era conhecida e é hoje tema de muitas pesquisas envolvendo outras doenças crônicas, como o câncer, o Alzheimer e a artrite reumatoide.
O bioquímico da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) José Henrique da Cunha, que estuda a relação entre Alzheimer e depressão, explica que esse quadro ainda não é totalmente conhecido e a pesquisa de Lannes-Vieira vem contribuir para seu esclarecimento. “O fator de necrose tumoral já foi relacionado anteriormente com o aumento do estado depressivo, o problema é que ainda não temos a visão completa dessa ligação, não sabemos se o aumento do fator de necrose tumoral tem uma relação causal com a depressão ou se existem outros fatores envolvidos”, comenta.
O estudo da Fiocruz foi o primeiro a identificar esse quadro na doença de Chagas. “Ninguém tinha percebido a relação entre Chagas e depressão porque outros sintomas, como a cardiopatia, são muito mais graves. Mas os problemas cardíacos são apenas a ponta do iceberg”, diz Lannes-Vieira. “A doença de Chagas é negligenciada e os pacientes também são, dificilmente têm acesso à terapia e a psicólogos. Com este trabalho, chamamos a atenção dos médicos para que passem a tratar a depressão causada pela doença.”
Os pesquisadores sugerem um procedimento novo de tratamento da doença, usando medicamentos já disponíveis no mercado, como a própria fluoxetina, que aumenta a serotonina no cérebro, e a pentoxifilina, que se mostrou eficiente para interferir na ação do fator de necrose tumoral.
Além de melhorar o quadro dos pacientes com Chagas, Lannes-Vieira acredita que o novo protocolo de tratamento, ainda em testes, pode ser útil para outras doenças em que ocorre a produção do fator de necrose tumoral e a depressão está presente, como o câncer e a artrite reumatoide. “Nossa descoberta vai além da doença de Chagas”, diz. “Mostramos que é possível reverter a depressão associada a doenças crônicas com o uso de drogas comerciais e baratas.” A equipe já está organizando um estudo clínico, em humanos, com o apoio de psicólogos.
Sofia Moutinho
Ciência Hoje/ RJ
Sofia Moutinho
Ciência Hoje/ RJ
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