Questão manicomial no Egito é retratada em documentário
Cineasta egípcia Marianna Khoury veio ao Brasil divulgar seu filme Zelale falar sobre assuntos relacionados à temática
*(imagem - foto colorida da divulgação do documentário, com um homem que olha através de grossas grades de ferro, denunciando seu enclausuramento)
Zelal é o primeiro registro cinematográfico sobre instituições psiquiátricas em países árabes. Dirigido pelos cineastas Marianne Khoury e Mustapha Hasnaqui e lançado em 2010, ganhou o prêmio da crítica internacional do Festival de Cinema de Dubai no mesmo ano.
A cineasta egípcia Marianna Khoury veio ao Brasil participar da estreia de Zelal e de debates com o público na 9ª Mostra Mundo Árabe de Cinema, organizada pelo Instituto da Cultura Árabe (Icarabe), entre agosto e setembro.
Marianna é diretora da Misr International Film e do projeto Misr Film Focus, voltado aos talentos egípcios emergentes, além de atuar como jurada em diversos festivais realizados nos países árabes. É sobrinha do grande cineasta egípcio (falecido em 2008) Youssef Chahine, com quem trabalhou por mais de 30 anos.
Dirigiu seu primeiro documentário, The Times of Laura, em 1999. Em 2002, lançouWomen Who Loved Cinema. Ambos os documentários tiveram reconhecimento pela crítica e abordam o trabalho inovador de mulheres no Egito há séculos.
Em relação às mulheres egípcias, Marianne afirma que o discurso opressor muitas vezes divulgado é parte de um estereótipo e não condiz com a realidade.
Desde quando recebeu o convite, a cineasta nunca hesitou em vir ao Brasil. Ela inclusive já tinha a representação imaginária do país. Nas ruas do centro de São Paulo, sentiu como se estivesse no Cairo e viu muitas similaridades entre as cidades, como o dinamismo e a vitalidade.
Zelal é um registro muito importante para ela. A ideia inicial era entrar nos hospitais psiquiátricos com uma pequena câmera e fazer tudo sozinha, como som e captação das imagens, mas ao perceber a grande dimensão desse projeto, ligou para Mustapha Hasnaqui, co-diretor do filme, e o convidou para o realizarem juntos.
O documentário foi filmado em Abassiya, que é o maior hospital psiquiátrico público do Egito. Existem vários hospitais internos interligados a essa instituição mental, ativa no país há mais de um século. Há alas destinadas aos homens, às mulheres, às crianças, às pessoas que cometeram crimes e tenham suspeita de ter alguma doença mental e outras. O filme retrata uma ala feminina e uma ala masculina.
Oito meses
A cineasta conta que isso tudo é parte da vida dela e foram três anos de envolvimento profundo com o tema, dos quais oito meses são de idas rotineiras ao hospital. Mesmo após a realização do filme, ela visitava as famílias dos pacientes.
“O mais interessante no filme é a intenção em mostrar que as pessoas retratadas podiam ser qualquer um de nós e quebrar a ideia de que essas pessoas, nessas instituições, são pessoas estranhas que fazem coisas estranhas. Quebrar o estigma com a saúde mental. Elas não somente poderiam ser nossas mães, nossos pais, nossos vizinhos, nós mesmos, mas ressaltar a qualidade da fala dessas pessoas, do discurso delas.”
A diretora enfatiza a importância de aprender com as experiências de outras pessoas. Cita uma exibição feita na Jordânia, com a presença de especialistas, terapeutas e médicos. Havia uma antiga paciente que atualmente é diretora de um instituto e cuida de pessoas que passam por problemas mentais. “Isso demonstra a importância de destacar a autossuficiência das pessoas, em todos os sentidos. Autossuficiência, autonomia, independência, inclusive do ponto de vista financeiro.”
A motivação que a levou retratar a vida das pessoas que vivem em manicômios partiu da vontade de entender mais sobre as histórias humanas. Esse é o tipo de trabalho que ela faz e está interessada em desenvolver: poder contar histórias através de documentários. Ela quis dar voz para essas pessoas e estar próxima delas. Marianne pontua que são “pessoas incríveis, porque são pessoas que não mentem, sendo possível conhecer a sociedade egípcia”.
A cineasta conta ter tido sorte em conseguir as permissões para filmar dentro do manicômio, sabendo não ser algo comum no Egito. Ela levou alguns filmes referenciais que abordam a questão para mostrar ao diretor do hospital, como a obra estadunidenseUm Estranho no Ninho, além de um filme argelino, um francês e um italiano, e disse o quanto seria interessante produzir algo parecido no país. Ele se animou. Como inspiração pessoal, Marianne também cita os livros de Michel Foucault.
A equipe, composta por cinco pessoas, circulou de maneira irrestrita e natural dentro do espaço, durante oito meses. Como resultado, conseguiram 100 horas de material bruto, para depois ser editado e chegar à versão final, com 90 minutos. Marianne teve a preocupação de fazer o documentário com as percepções e falas dos internos, ou seja, “as vozes que estão dentro do hospital”, e não as vozes institucionais.
As histórias
Marianne explica que a estrutura narrativa de Zelal foi contada como um ciclo. Primeiro mostra as pessoas sendo internadas no manicômio, depois apresenta o cotidiano delas e a terceira parte é a tentativa das pessoas saírem do hospital. “Intencionalmente não há nenhuma trilha sonora, nenhuma outra música que não fosse os sons que saíssem lá de dentro, para manter a originalidade e autenticidade do espaço.”
Todos os pacientes que aparecem consentiram em participar. Não houve nenhuma câmera escondida. A única solicitação foi para que não exibisse a parte destinada aos detentos, os pacientes com condenação criminal.
Há um ambiente de normalidade dentro do manicômio que faz questionar o que é a loucura e os motivos pelos quais as pessoas lá internadas são consideradas loucas. “Muitas dessas pessoas quando entraram no hospital realmente não tinham nada que pudesse ser considerado como loucura, entraram por diferentes razões, como por exemplo, a mulher cujo irmão queria que ela casasse. Ela deu um tapa no irmão, então, ele a internou”, conta Marianne. Essa senhora citada, que há 20 anos vive no manicômio, diz em uma das cenas: “Enterrei minha miserável juventude aqui”.
Outra situação mostrada é a de uma mulher que insistiu muito para estar no filme, que foi internada após não aceitar a indiferença do marido depois do casamento. A interna relata que se arrumava para ele, que a rejeitava. Com isso, se satisfazia com a masturbação. “Ele não me dava amor e carinho. E faço comigo mesma até sangrar. Graças a Deus, não tive filhos, porque ele iria tirá-los de mim”.
A questão de gênero é amplamente apresentada, através dos relatos das mulheres internas, cuja maioria foi colocada no manicômio pelos próprios maridos ou familiares que não as aceitam. Esse é um momento importante do filme, enfatiza a cineasta, pois possibilita ao espectador olhar e dizer que essas mulheres não são loucas, porque falam a verdade.
Em Abassiya, há internações obrigatórias, quando parentes levam a pessoa ao hospital sem o consentimento, e voluntárias. Um dos exemplos de paciente voluntário é Walid, um jovem cuja mãe julga ser doente por se negar a seguir a mesma religião que ela e falar sozinho. O rapaz, que não aparenta nenhum tipo de transtorno, argumenta que resolveu se internar para descobrir se tem algum problema neurológico.
As histórias contadas envolvem principalmente conflitos familiares. Aliadas às questões religiosas e políticas, são as três principais esferas que os colocam aprisionados em manicômios.
Segregados de uma sociedade que não aceita o diferente e os julga, as vozes lançadas transbordam lucidez. Yousef, um dos homens internos no manicômio, é questionador e apresenta um discurso coerente e necessário. Ele mostra as péssimas condições dos móveis nos quartos, a precariedade das instalações elétricas e aponta as injustiças. “Quando se está preso se obedece ordens. O ajudante acha que é Deus, eu sou só o cachorro dele”, fala, com muito esclarecimento sobre sua situação, e filosofa, em outro momento: “Eu sou louco. Vocês são os lunáticos”.
Outro caso complexo é o do jovem Sabry, que por problemas familiares e pressões sociais, há anos estabelece uma relação de entradas e saídas da instituição psiquiátrica. “Eu chorava no começo. Fugi três, quatro vezes. Quando todos dormiam eu pulava a cerca. Eles me traziam de volta. Eu fugia de novo. Estou aqui há um tempo. Tenho 22 anos. Vim quando tinha 14 anos. Quem vai para um hospício com 14 anos?”, pergunta, para depois completar com a afirmação de que, caso tivesse uma relação familiar saudável, não passaria por essa situação.
O jovem também fala dos preconceitos enfrentados ao sair do manicômio, pelo estigma que existe em relação à questão manicomial e às doenças mentais. Há uma parte do filme que o mostra tomando eletrochoque pela equipe médica, tido como parte do tratamento. O rapaz, com argumentos contundentes, afirma que a sociedade julga quem passa por instituições psiquiátricas e fala sobre quanto o amparo familiar poderia mudar a realidade manicomial. “Eles nos privam de piedade e amor. Ninguém nos quer”.
Quando um funcionário, em uma das cenas, tenta explicar a situação de um paciente o qual ele aponta como um ‘caso especial’, que diz ter sido jogado lá e que eles cuidam (embora sejam aparentes as negligências com o rapaz, debilitado e visivelmente dopado de remédios, ao ponto de babar enquanto fala), o interno faz denúncias, mesmo deitado e fragilizado. “Mahmoud [funcionário do hospital] bateu em mim. São maus comigo”, se posiciona.
Quem é louco?
“Foi justamente por isso que fiz o filme, para questionar o que é loucura. Essa foi a questão que me motivou. Quem é louco? São pessoas que fazem coisas excêntricas? Que fazem coisas diferentes das outras pessoas? Pessoas que não se conformam às regras? Pessoas que não aceitam? Pessoas que são muito inteligentes? Como, por exemplo Yousef, que é um rapaz brilhante e, justamente por isso, atrai uma imensa atenção para ele. No Egito, estar o tempo inteiro cercado por outras pessoas pode ser um indicador de caos. É mais cômodo ter esse rapaz internado ou afastado para evitar esse tipo de situação”, pontua Marianne.
Por ser um hospital público, há limitações em termos de tratamento. Não há atenção individualizada, nem terapia, todos passam pelo mesmo processo e tomam remédios. As condições higiênicas são mínimas. O orçamento atribuído pelo Ministério da Saúde é baixo. A rotina burocrática do manicômio impede planos mais criativos, além de maior preparo educacional por parte dos funcionários para garantir melhorias aos pacientes.
Embora Marianne não tenha presenciado nenhuma situação de tortura, ela afirma ter escutado ser muito utilizada pelos funcionários como forma de punição.
“Se o paciente não estava fazendo o que era esperado dele, se estava se comportando mal, tomava eletrochoque, que agora é parte do tratamento.” Ela menciona que há torturas físicas e psicológicas. “Eles têm que seguir um processo disciplinar, passam também por uma tortura mental, pela maneira como são tratados.”
Quebra de estigma
O documentário não é simplesmente observacional. Há algo etnográfico e as pessoas falam o tempo todo e conversam entre si, o que gera aproximação com o público. As reações dos espectadores são várias. A cineasta conta que há quem tenha saído nos cinco minutos iniciais, por não conseguir lidar com a presença da situação manicomial e há pessoas que se identificam e querem saber mais.
No Brasil, em ambos os debates, o público foi participativo e interessado. Houve momentos de emoção e relatos pessoais que envolvem a questão manicomial, bastante parecida nos dois países. Marianne ressalta a qualidade e intensidade das conversas no Brasil. A afinidade foi grande e ela inclusive começou a entender algumas palavras em português.
Durante as filmagens, houve a ética em pensar como representá-los através de uma lente. Algumas situações foram evitadas, como momentos de refeições, para respeitar a privacidade.
Há internos que, por terem passado muitos anos reclusos, sentem dificuldades de adaptação social e acabam por perder referências externas, permanecendo no manicômio, como no caso de um senhor, Isaac, que trabalha como engraxate, que está aprisionado desde os nove anos de idade, e foi o único com um pouco de receio em ser filmado, com medo de perder o emprego alternativo.
Marianne conta que no Cairo, embora seja uma cidade ‘mágica’, há bastante agressividade, como muitas cidades grandes de outros países, o que gera medo em quem não se sente preparado para voltar ao convívio social.
A questão manicomial é ainda um tabu. O ciclo vicioso gerado, de constante permanência na instituição psiquiátrica, frustra os pacientes que, não raro, passam grande parte de suas vidas, reclusos. Muitas vezes, eles permanecem encarcerados não por suas doenças, mas pela recusa familiar e social em os aceitarem.
Outro problema é a falta de centros de reabilitação, que faz com que pessoas que tenham problemas com álcool e drogas acabem sendo internadas no manicômio. Isso fortalece o problema do estigma, pois as pessoas, ao saírem, têm que lidar com familiares, vizinhos e pessoas próximas. “É um sistema que acaba sendo muito agressivo, devido à ausência de equipamentos de reabilitação. O mais importante é justamente aprender com a experiência das pessoas que vivenciam essa situação”, diz Marianne.
Sobre as reformas na questão manicomial egípcia, há um processo de conscientização sendo iniciado, o que possibilitou a entrada dos cineastas para filmar o documentário. Há um movimento civil que intensifica essa visibilidade. Houve uma mudança recente na lei, com o Artigo 4, que é citado no documentário. Esse item coloca que, se o paciente quiser sair, pode. Porém, é uma questão complexa e cultural, e muitos permaneceram. Foi colocado que os hospitais psiquiátricos pioram a condição mental das pessoas internas.
O documentário intensifica o contato entre a comunidade manicomial e a sociedade e possibilita diálogos que refletem a humanidade, através de situações como as relações familiares, religiosas, sexuais e outras questões importantes, a partir das vozes de pessoas incríveis, rotuladas de doentes mentais.
O nome do filme, Zelal, em árabe, significa “sombras”. Marianne destaca que essa escolha se deu porque “essas pessoas estão vivendo na sombra da sociedade e nas suas próprias sombras, que são as histórias reveladas no documentário”.
FONTE - http://www.brasildefato.com.br/node/30244
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