quinta-feira, 23 de outubro de 2014

SAÚDE MENTAL/MANICÔMIOS - Documentário Zelal é primeiro a revelar instituições psiquiátrica do Egito

Questão manicomial no Egito é retratada em documentário

Cineasta egípcia Marianna Khoury veio ao Brasil divulgar seu filme Zelale falar sobre assuntos relacionados à temática
*(imagem - foto colorida da divulgação do documentário, com um homem que olha através de grossas grades de ferro, denunciando seu enclausuramento)
Zelal é o primeiro registro cinema­tográfico sobre instituições psiquiátricas em países árabes. Dirigido pelos cineas­tas Marianne Khoury e Mustapha Has­naqui e lançado em 2010, ganhou o prê­mio da crítica internacional do Festival de Cinema de Dubai no mesmo ano.
A cineasta egípcia Marianna Khoury veio ao Brasil participar da estreia de Ze­lal e de debates com o público na 9ª Mos­tra Mundo Árabe de Cinema, organizada pelo Instituto da Cultura Árabe (Icara­be), entre agosto e setembro.
Marianna é diretora da Misr Interna­tional Film e do projeto Misr Film Fo­cus, voltado aos talentos egípcios emer­gentes, além de atuar como jurada em di­versos festivais realizados nos países ára­bes. É sobrinha do grande cineasta egíp­cio (falecido em 2008) Youssef Chahi­ne, com quem trabalhou por mais de 30 anos.
Dirigiu seu primeiro documentário, The Times of Laura, em 1999. Em 2002, lançouWomen Who Loved Cinema. Am­bos os documentários tiveram reconhe­cimento pela crítica e abordam o traba­lho inovador de mulheres no Egito há sé­culos.
Em relação às mulheres egípcias, Ma­rianne afirma que o discurso opressor muitas vezes divulgado é parte de um es­tereótipo e não condiz com a realidade.
Desde quando recebeu o convite, a ci­neasta nunca hesitou em vir ao Brasil. Ela inclusive já tinha a representação imaginária do país. Nas ruas do centro de São Paulo, sentiu como se estivesse no Cairo e viu muitas similaridades en­tre as cidades, como o dinamismo e a vi­talidade.
Zelal é um registro muito importan­te para ela. A ideia inicial era entrar nos hospitais psiquiátricos com uma peque­na câmera e fazer tudo sozinha, como som e captação das imagens, mas ao per­ceber a grande dimensão desse projeto, ligou para Mustapha Hasnaqui, co-dire­tor do filme, e o convidou para o realiza­rem juntos.
O documentário foi filmado em Abas­siya, que é o maior hospital psiquiátrico público do Egito. Existem vários hospi­tais internos interligados a essa institui­ção mental, ativa no país há mais de um século. Há alas destinadas aos homens, às mulheres, às crianças, às pessoas que cometeram crimes e tenham suspeita de ter alguma doença mental e outras. O fil­me retrata uma ala feminina e uma ala masculina.
Oito meses
A cineasta conta que isso tudo é parte da vida dela e foram três anos de envol­vimento profundo com o tema, dos quais oito meses são de idas rotineiras ao hos­pital. Mesmo após a realização do filme, ela visitava as famílias dos pacientes.
O mais interessante no filme é a inten­ção em mostrar que as pessoas retratadas podiam ser qualquer um de nós e que­brar a ideia de que essas pessoas, nessas instituições, são pessoas estranhas que fazem coisas estranhas. Quebrar o es­tigma com a saúde mental. Elas não so­mente poderiam ser nossas mães, nossos pais, nossos vizinhos, nós mesmos, mas ressaltar a qualidade da fala dessas pes­soas, do discurso delas.”
A diretora enfatiza a importância de aprender com as experiências de outras pessoas. Cita uma exibição feita na Jor­dânia, com a presença de especialistas, terapeutas e médicos. Havia uma anti­ga paciente que atualmente é diretora de um instituto e cuida de pessoas que pas­sam por problemas mentais. “Isso de­monstra a importância de destacar a au­tossuficiência das pessoas, em todos os sentidos. Autossuficiência, autonomia, independência, inclusive do ponto de vista financeiro.
A motivação que a levou retratar a vida das pessoas que vivem em manicômios partiu da vontade de entender mais so­bre as histórias humanas. Esse é o tipo de trabalho que ela faz e está interessada em desenvolver: poder contar histórias atra­vés de documentários. Ela quis dar voz para essas pessoas e estar próxima delas. Marianne pontua que são “pessoas incrí­veis, porque são pessoas que não men­tem, sendo possível conhecer a socieda­de egípcia”.
A cineasta conta ter tido sorte em con­seguir as permissões para filmar dentro do manicômio, sabendo não ser algo co­mum no Egito. Ela levou alguns filmes referenciais que abordam a questão pa­ra mostrar ao diretor do hospital, como a obra estadunidenseUm Estranho no Ni­nho, além de um filme argelino, um fran­cês e um italiano, e disse o quanto seria interessante produzir algo parecido no país. Ele se animou. Como inspiração pessoal, Marianne também cita os livros de Michel Foucault.
A equipe, composta por cinco pesso­as, circulou de maneira irrestrita e natu­ral dentro do espaço, durante oito meses. Como resultado, conseguiram 100 horas de material bruto, para depois ser edita­do e chegar à versão final, com 90 minu­tos. Marianne teve a preocupação de fa­zer o documentário com as percepções e falas dos internos, ou seja, “as vozes que estão dentro do hospital”, e não as vozes institucionais.
As histórias
Marianne explica que a estrutura nar­rativa de Zelal foi contada como um ci­clo. Primeiro mostra as pessoas sendo in­ternadas no manicômio, depois apresen­ta o cotidiano delas e a terceira parte é a tentativa das pessoas saírem do hospital. “Intencionalmente não há nenhuma tri­lha sonora, nenhuma outra música que não fosse os sons que saíssem lá de den­tro, para manter a originalidade e auten­ticidade do espaço.”
Todos os pacientes que aparecem con­sentiram em participar. Não houve ne­nhuma câmera escondida. A única soli­citação foi para que não exibisse a parte destinada aos detentos, os pacientes com condenação criminal.
Há um ambiente de normalidade den­tro do manicômio que faz questionar o que é a loucura e os motivos pelos quais as pessoas lá internadas são considera­das loucas. “Muitas dessas pessoas quan­do entraram no hospital realmente não tinham nada que pudesse ser considera­do como loucura, entraram por diferen­tes razões, como por exemplo, a mulher cujo irmão queria que ela casasse. Ela deu um tapa no irmão, então, ele a inter­nou”, conta Marianne. Essa senhora ci­tada, que há 20 anos vive no manicômio, diz em uma das cenas: “Enterrei minha miserável juventude aqui”.
Outra situação mostrada é a de uma mulher que insistiu muito para estar no filme, que foi internada após não acei­tar a indiferença do marido depois do casamento. A interna relata que se ar­rumava para ele, que a rejeitava. Com isso, se satisfazia com a masturbação. “Ele não me dava amor e carinho. E fa­ço comigo mesma até sangrar. Graças a Deus, não tive filhos, porque ele iria ti­rá-los de mim”.
A questão de gênero é amplamente apresentada, através dos relatos das mu­lheres internas, cuja maioria foi colocada no manicômio pelos próprios maridos ou familiares que não as aceitam. Esse é um momento importante do filme, enfatiza a cineasta, pois possibilita ao espectador olhar e dizer que essas mulheres não são loucas, porque falam a verdade.
Em Abassiya, há internações obriga­tórias, quando parentes levam a pessoa ao hospital sem o consentimento, e vo­luntárias. Um dos exemplos de paciente voluntário é Walid, um jovem cuja mãe julga ser doente por se negar a seguir a mesma religião que ela e falar sozinho. O rapaz, que não aparenta nenhum tipo de transtorno, argumenta que resolveu se internar para descobrir se tem algum problema neurológico.
As histórias contadas envolvem princi­palmente conflitos familiares. Aliadas às questões religiosas e políticas, são as três principais esferas que os colocam apri­sionados em manicômios.
Segregados de uma sociedade que não aceita o diferente e os julga, as vozes lançadas transbordam lucidez. Yousef, um dos homens internos no manicô­mio, é questionador e apresenta um dis­curso coerente e necessário. Ele mostra as péssimas condições dos móveis nos quartos, a precariedade das instalações elétricas e aponta as injustiças. “Quando se está preso se obedece ordens. O aju­dante acha que é Deus, eu sou só o ca­chorro dele”, fala, com muito esclareci­mento sobre sua situação, e filosofa, em outro momento: “Eu sou louco. Vocês são os lunáticos”.
Outro caso complexo é o do jovem Sa­bry, que por problemas familiares e pres­sões sociais, há anos estabelece uma re­lação de entradas e saídas da instituição psiquiátrica. “Eu chorava no começo. Fu­gi três, quatro vezes. Quando todos dor­miam eu pulava a cerca. Eles me traziam de volta. Eu fugia de novo. Estou aqui há um tempo. Tenho 22 anos. Vim quando tinha 14 anos. Quem vai para um hospí­cio com 14 anos?”, pergunta, para depois completar com a afirmação de que, ca­so tivesse uma relação familiar saudável, não passaria por essa situação.
O jovem também fala dos preconceitos enfrentados ao sair do manicômio, pe­lo estigma que existe em relação à ques­tão manicomial e às doenças mentais. Há uma parte do filme que o mostra toman­do eletrochoque pela equipe médica, tido como parte do tratamento. O rapaz, com argumentos contundentes, afirma que a sociedade julga quem passa por institui­ções psiquiátricas e fala sobre quanto o amparo familiar poderia mudar a reali­dade manicomial. “Eles nos privam de piedade e amor. Ninguém nos quer”.
Quando um funcionário, em uma das cenas, tenta explicar a situação de um paciente o qual ele aponta como um ‘caso especial’, que diz ter sido jogado lá e que eles cuidam (embora sejam aparentes as negligências com o rapaz, debilitado e vi­sivelmente dopado de remédios, ao pon­to de babar enquanto fala), o interno faz denúncias, mesmo deitado e fragilizado. “Mahmoud [funcionário do hospital] ba­teu em mim. São maus comigo”, se po­siciona.
Quem é louco?
Foi justamente por isso que fiz o filme, para questionar o que é loucura. Essa foi a questão que me motivou. Quem é lou­co? São pessoas que fazem coisas excên­tricas? Que fazem coisas diferentes das outras pessoas? Pessoas que não se con­formam às regras? Pessoas que não acei­tam? Pessoas que são muito inteligentes? Como, por exemplo Yousef, que é um ra­paz brilhante e, justamente por isso, atrai uma imensa atenção para ele. No Egito, estar o tempo inteiro cercado por outras pessoas pode ser um indicador de caos. É mais cômodo ter esse rapaz internado ou afastado para evitar esse tipo de situa­ção”, pontua Marianne.
Por ser um hospital público, há limi­tações em termos de tratamento. Não há atenção individualizada, nem tera­pia, todos passam pelo mesmo processo e tomam remédios. As condições higiê­nicas são mínimas. O orçamento atribu­ído pelo Ministério da Saúde é baixo. A rotina burocrática do manicômio impe­de planos mais criativos, além de maior preparo educacional por parte dos fun­cionários para garantir melhorias aos pacientes.
Embora Marianne não tenha presen­ciado nenhuma situação de tortura, ela afirma ter escutado ser muito uti­lizada pelos funcionários como forma de punição.
“Se o paciente não estava fazendo o que era esperado dele, se estava se com­portando mal, tomava eletrochoque, que agora é parte do tratamento.” Ela menciona que há torturas físicas e psi­cológicas. “Eles têm que seguir um pro­cesso disciplinar, passam também por uma tortura mental, pela maneira como são tratados.”
Quebra de estigma
O documentário não é simplesmente observacional. Há algo etnográfico e as pessoas falam o tempo todo e conversam entre si, o que gera aproximação com o público. As reações dos espectadores são várias. A cineasta conta que há quem te­nha saído nos cinco minutos iniciais, por não conseguir lidar com a presença da si­tuação manicomial e há pessoas que se identificam e querem saber mais.
No Brasil, em ambos os debates, o pú­blico foi participativo e interessado. Hou­ve momentos de emoção e relatos pesso­ais que envolvem a questão manicomial, bastante parecida nos dois países. Ma­rianne ressalta a qualidade e intensidade das conversas no Brasil. A afinidade foi grande e ela inclusive começou a enten­der algumas palavras em português.
Durante as filmagens, houve a ética em pensar como representá-los através de uma lente. Algumas situações foram evi­tadas, como momentos de refeições, pa­ra respeitar a privacidade.
Há internos que, por terem passado muitos anos reclusos, sentem dificulda­des de adaptação social e acabam por perder referências externas, permane­cendo no manicômio, como no caso de um senhor, Isaac, que trabalha como en­graxate, que está aprisionado desde os nove anos de idade, e foi o único com um pouco de receio em ser filmado, com me­do de perder o emprego alternativo.
Marianne conta que no Cairo, embo­ra seja uma cidade ‘mágica’, há bastan­te agressividade, como muitas cidades grandes de outros países, o que gera me­do em quem não se sente preparado para voltar ao convívio social.
A questão manicomial é ainda um ta­bu. O ciclo vicioso gerado, de constante permanência na instituição psiquiátrica, frustra os pacientes que, não raro, pas­sam grande parte de suas vidas, reclusos. Muitas vezes, eles permanecem encarce­rados não por suas doenças, mas pela re­cusa familiar e social em os aceitarem.
Outro problema é a falta de centros de reabilitação, que faz com que pessoas que tenham problemas com álcool e dro­gas acabem sendo internadas no manicô­mio. Isso fortalece o problema do estig­ma, pois as pessoas, ao saírem, têm que lidar com familiares, vizinhos e pessoas próximas. “É um sistema que acaba sen­do muito agressivo, devido à ausência de equipamentos de reabilitação. O mais importante é justamente aprender com a experiência das pessoas que vivenciam essa situação”, diz Marianne.
Sobre as reformas na questão mani­comial egípcia, há um processo de cons­cientização sendo iniciado, o que possi­bilitou a entrada dos cineastas para fil­mar o documentário. Há um movimen­to civil que intensifica essa visibilidade. Houve uma mudança recente na lei, com o Artigo 4, que é citado no documentá­rio. Esse item coloca que, se o paciente quiser sair, pode. Porém, é uma questão complexa e cultural, e muitos permane­ceram. Foi colocado que os hospitais psi­quiátricos pioram a condição mental das pessoas internas.
O documentário intensifica o contato entre a comunidade manicomial e a so­ciedade e possibilita diálogos que refle­tem a humanidade, através de situações como as relações familiares, religiosas, sexuais e outras questões importantes, a partir das vozes de pessoas incríveis, ro­tuladas de doentes mentais.
O nome do filme, Zelal, em árabe, sig­nifica “sombras”. Marianne  destaca que essa escolha se deu porque “essas pesso­as estão vivendo na sombra da socieda­de e nas suas próprias sombras, que são as histórias reveladas no documentário”.
FONTE - http://www.brasildefato.com.br/node/30244
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SAÚDE MENTAL: quando a Bioética se encontra com a Resiliência.http://infoativodefnet.blogspot.com.br/2012/10/saude-mental-quando-bioetica-se_11.html

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